domingo, 13 de setembro de 2009

Michael Löwy: A Teologia da Libertação: Leonardo Boff e Frei Betto - II

Apesar de que existem divergências significativas entre os teólogos da libertação, na maioria de seus escritos encontramos repetidos os temas fundamentais que constituem uma saída radical da doutrina tradicional e estabelecida das Igrejas Católica e Protestante:
-Uma implacável acusação moral e social contra o capitalismo como sistema injusto e iníquo, como forma de pecado estrutural.
-O uso do instrumento marxista para compreender as causas da pobreza, as contradições do capitalismo e as formas da luta de classes.
-A opção preferencial a favor dos pobres e a solidariedade com sua luta de emancipação social.
-O desenvolvimento de comunidades cristãs de base entre os pobres como a nova forma da Igreja e como alternativa ao modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista.
-A luta contra a idolatria (não o ateísmo) como inimigo principal da religião, isto é, contra os novos ídolos da morte, adorados pelos novos faraós, pelos novos Césares e pelos novos Herodes: O consumismo, a riqueza, o poder, a segurança nacional, o Estado, os exércitos; em poucas palavras, "a civilização cristã ocidental".
Examinemos mais de perto os escritos de Leonardo Boff e de Frei Betto, cujas idéias contribuíram, sem dúvida, à formação da cultura político-religiosa do componente cristão do altermundismo.
O livro de Leonardo Boff -na época, membro da ordem franciscana,- Jesus Cristo libertador, (Petrópolis, Vozes, 1971), pode ser considerado como a primeira obra da Teologia da Libertação no Brasil. Essencialmente, trata-se de uma obra de exegese bíblica; porém um dos capítulos, possivelmente o mais inovador, intitulado "Cristologia desde América Latina", expressa o desejo de que a Igreja possa "participar de maneira crítica no arrranque global de libertação que a sociedade sul-americana conhece hoje". Segundo Boff, a hermenêutica bíblica de seu livro está inspirada pela realidade latino-americana, o que dá como resultado "a primazia do elemento antropológico sobre o eclesiástico, do utópico sobre o efetivo, do crítico sobre o dogmático, do social sobre o pessoal e da ortopráxis sobre a ortodoxia"; aqui se anunciam alguns dos temas fundamentais da Teologia da Libertação [1].
Personagem carismático, com uma cultura e uma criatividade enormes, ao mesmo tempo místico franciscano e combatente social, Boff converteu-se no principal representante brasileiro dessa nova corrente teológica. Em seu primeiro livro já encontramos referencias ao "Princípio Esperança", de Ernst Bloch, porém, progressivamente, no curso dos anos 70, os conceitos e temas marxistas cada vez mais aparecem em sua obra até converter-se em um dos componentes fundamentais de sua reflexão sobre as causas da pobreza e a prática da solidariedade com a luta dos pobres por sua libertação.
Rechaçando o argumento conservador que pretende julgar o marxismo pelas práticas históricas do chamado "socialismo real", Boff constata, não sem ironia, que o mesmo que o Cristianismo não se identifica com os mecanismos da Santa Inquisição, o marxismo não tem porque se equiparar aos "socialismos" existentes, que "não representam uma alternativa desejável por conta de sua tirania burocrática e pelo sufocamento das liberdades individuais". O ideal socialista pode e deve assumir outras formas históricas [2]
Em 1981, Leonardo Boff publica o livro "Igreja, Carisma e Poder", uma reviravolta na história da Teologia da Libertação: por primeira vez desde a Reforma protestante, um sacerdote católico coloca em xeque, de maneira direta, a autoridade hierárquica da Igreja, seu estilo de poder romano-imperial, sua tradição de intolerância e dogmatismo -simbolizada durante vários séculos pela Inquisição, pela repressão de toda crítica vinda de baixo e o rechaço da liberdade de pensamento. Denuncia também a pretensão de infalibilidade da Igreja e o poder pessoal excessivo dos papas, que compara, não sem ironia, com o poder do secretário geral do Partido Comunista soviético.
Convocado pelo Vaticano em 1984 para um "colóquio" com a Santa Congregação para a Doutrina da Fé (antes, o Santo Ofício), dirigida pelo Cardenal Ratzinger, o teólogo brasileiro não abaixa a cabeça, nem nega retratar-se; permanece fiel a suas convicções e Roma o condena a um ano de "silencio obsequioso"; finalmente, frente à multiplicação dos protestos no Brasil e em outros lugares, a sansão foi reduzida em vários meses. Dez anos mais tarde, cansado do hostigamento, das proibições e das exclusões de Roma, Boff abandona a ordem dos franciscanos e a Igreja, sem, no entanto, abandonar sua atividade de teólogo católico.
A partir dos anos 90, interessa-se cada vez mais pelas questões ecológicas que aborda com o espírito de amor místico e franciscano pela natureza e com uma perspectiva de crítica radical do sistema capitalista. Será o objeto do livro Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, (S. Paulo, Ática, 1995) e escreve inúmeros ensaios filosóficos, éticos e teológicos que abordam esta problemática. Segundo Leonardo Boff, o encontro entre a Teologia da Libertação e a ecologia é resultado de uma constatação: "A mesma lógica do sistema dominante de acumulação e da organização social que conduz à exploração dos trabalhadores, leva também à pilhagem de nações inteiras, e, finalmente, à degradação da natureza".
Portanto, a Teologia da Libertação aspira a uma ruptura com a lógica desse sistema, uma ruptura radical que aponta a "libertar os pobres, os oprimidos e os excluídos, as vítimas da voracidade da acumulação injustamente distribuída e libertar a Terra, essa grande vítima sacrificada pela pilhagem sistemática de seus recursos, que põe em risco o equilíbrio físico, químico e biológico do planeta como um todo". O paradigma opressão / libertação aplica-se, pois, para ambas: as classes dominadas e exploradas por um lado; e a Terra e suas espécies vivas, por outro [3].

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